domingo, 24 de fevereiro de 2013

Gênero é mais que uma questão biológica.




Apesar de diferenças biológicas definirem o sexo do indivíduo a partir da distinção de seus aparelhos sexuais é a construção sociocultural, e não os fundamentos biológicos, que irá impor diferenciações entre homens e mulheres que mais pesarão na formação da sua identidade de gênero. E a socialização será a reforçadora dessa diferenciação sociocultural impondo costumes e exigindo uma resposta comportamental desse indivíduo, de acordo com o modelo cultural estabelecido de como ser homem e ser mulher na sua sociedade. No entanto, embora ele passe pelo processo de socialização que corresponde culturalmente ao seu sexo biológico, pode não se identificar e não reproduzir o comportamento que se espera dele em relação aos moldes sociais que foram historicamente estabelecidos.
Nesse embate de determinação dos papéis sociais de acordo com o sexo, na tentativa de criar barreiras que impeçam que o indivíduo se afaste do ideal que foi estabelecido como norma para seu comportamento, surgem as ações estigmatizadoras dos “desvios”, por exemplo, de mulheres que não se identificam com a maternidade e optam por não ter filhos e de homens que realizam os trabalhos domésticos enquanto suas mulheres exercem atividade remunerada fora de casa. Pois a normalização social entende que eles não cumprem ou inverteram seus papéis e isso vai de encontro às concepções que historicamente definiram a divisão social do trabalho a partir do critério do sexo em acordo com os aspectos culturais e que delimitaram as atividades próprias para homens e mulheres. Um bom exemplo é pensar que inicialmente a docência era uma atividade exclusivamente masculina e que ao longo do tempo foi passando a ser uma atividade dominada por mulheres e hoje o senso comum entende que um homem não teria "jeito" pra lidar com crianças e portanto não vemos homens atuando nas séries iniciais ou na educação infantil. Essas concepções foram criadas a partir do determinismo biológico que reservou à mulher, devido à sua capacidade de gerar filhos, as funções de manter os cuidados com a família e as tarefas domésticas considerando que seria sua aptidão natural lidar com crianças por ser a geradora.
Remetendo à socialização que favorece os estigmas relacionados à distinção dos papéis sexuais basta pensar em como somos levados desde muito pequenos a reproduzir o modelo social que reforça o comportamento de acordo com o sexo quando somos presenteados com coisas de meninos ou coisas de meninas e que farão parte das nossas teatralizações da vida adulta. E nesse faz de conta meninas vão se habituando a usar panelinhas, fogões, bonequinhas e vai internalizando uma competência para maternidade, para qual se entende que possui aptidão inata por ser mulher e não porque foi socialmente levada a desenvolver. Já os meninos começam pouco a pouco a se envolverem com "o mundo dos homens", do poder e da força, e para aprender a lidar com ele recebem carrinhos, jogos e materiais esportivos e são desencorajados a brincar com bonecas ou a desenvolver atividades ligadas à arte e a subjetividade e são muito reprimidos quando demonstram alguma fragilidade.
Já no campo da sexualidade o comportamento machista é reforçado desde a infância de tal forma que as mães, portanto mulheres, conduzem a educação dos meninos para a liberdade sexual que desaprovam nos seus maridos. E para elas é “natural” que o menino seja conduzido a ter uma namoradinha em cada lugar social que frequenta, como a escolinha, a clínica pediátrica, o clube, o bairro e etc., devido à concepção de que ele deve se “comportar como homem” desde cedo. Já a menina é tolhida desse comportamento e orientada para a iniciação sexual tardia e o relacionamento monogâmico. Essa postura familiar é uma contribuição direta à privação da liberdade sexual feminina, pois além de internalizar nela que não possui o direito de buscar relações sexuais por prazer e que deve se reservar aos papéis de esposa e mãe, também influencia a mulher a querer manter a qualquer custo um relacionamento ainda que ele não seja satisfatório ou que represente risco à sua integridade física e emocional. E assim, mulheres acabam sendo as principais vítimas de crimes passionais, devido também a condições sociais e étnicas que desfavorecem a sua possibilidade de independência financeira, pois grande parte não possui renda ou escolaridade que lhe garanta a sobrevivência já que são educadas, ainda hoje, para esperar no casamento ser provida pelo marido e por isso, mesmo quando denunciam a violência doméstica acabam voltando para casa até que são mortas. Mas esses crimes, apesar de repercutirem caem no esquecimento, à exceção dos mais famosos pela crueldade ou pela publicidade da vítima ou do agressor, e até penso que criam a sensação de naturalização quando deveriam na verdade chamar a atenção para a condição de desigualdade entre os sexos e nas relações de poder historicamente construídas que remetem a mulher à condição de inferioridade social ao homem.
Organismos sociais como algumas religiões e a família difundem ideias que submetem os indivíduos que “desviam” da norma a grande sofrimento emocional, psíquico e físico, por não tolerarem suas diferenças. E além de imperar como controle social o preconceito e a violência tanto simbólica quanto física culminam nas reações machistas e homofóbicas contra mulheres, homossexuais e outros grupos apontados como desviantes. Assim, os papéis historicamente definidos distintamente para homens e mulheres foram demarcados a partir da cultura e da divisão social/sexual do trabalho e nem sempre condizem com a identidade de gênero do indivíduo, que apesar de possuir o sexo biológico definido culturalmente para agir, pensar e sentir de determinado modo sente identificação com o comportamento do sexo oposto ao seu. Portanto, ser homem e ser mulher envolve dimensões além do determinismo biológico, pois são construções que serão influenciadas pela identificação do indivíduo com a cultura e a socialização.


Referências


COSTA, A. A. A. A construção do pensamento feminista sobre o "Não-poder" das mulheres. In: As donas no poder. Mulher e política na Bahia. 1. ed. Salvador: Assembléia Legislativa da Bahia/NEIM-UFBa, 1998.

Gênero: uma categoria útil de análise histórica - Joan Scott.

Não se nasce homem - Mariza Corrêa.

Identidade de Gênero e Sexualidade - Míriam Pillar Grossi.

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